Celebrar a Paixão de Jesus na paixão dos mais sofridos

Mais uma vez assistimos ao dilema provocado por alguns membros de nossa Igreja que se opõem de forma veemente à Campanha da Fraternidade. Essas pessoas entendem que viver bem o tempo da quaresma e celebrar a paixão, morte e ressurreição de Jesus é viver os exercícios devocionais de piedade da Tradição da nossa Igreja: jejum, oração e esmola/caridade.

Sabemos que a Campanha da fraternidade nasceu de uma iniciativa local na cidade de Nísia Floresta, arquidiocese de Nata/RN. Em 1964 foi acolhida em âmbito nacional e espalhou-se por todo o Brasil. Apresentar um tema a ser refletido e associado à paixão, morte e ressurreição do Senhor, é uma forma muito peculiar da Igreja do Brasil de viver a quaresma e de nos preparar para a celebração do tríduo pascal. Dissociar a paixão do Senhor da paixão dos nossos irmãos que padecem hoje nos vários contextos sociais é, absolutamente, não ter compreendido o significado da encarnação, paixão e ressurreição do Verbo de Deus. É não ter entendido nada do que Jesus exaustivamente nos ensina no seu Evangelho da vida. O próprio Jesus nos ensina que tudo que fizermos ao menor de nossos irmãos é a Ele que o fazemos (cf. Mt 25,31-46).

É claro que a Igreja no Brasil, ao propor a cada ano um tema para nossa reflexão, não está nos desmotivando ou proibindo que cultivemos a vivência da prática do jejum, da oração e da esmola/caridade. Ela quer que, também abramos a cabeça e os olhos para as realidades sociais que desafiam a nossa fé e a nossa conversão na construção de um mundo que seja já sinal do reinado de Deus. A oração verdadeira só faz sentido se ela nos conecta a Deus e nos faz descobrir n’Ele um projeto de vida abundante para todos. O jejum verdadeiro é aquele que nos faz, na privação do alimento, descobrir que tudo aquilo do quê os filhos de Deus são privados para a sua dignidade, deve ser reivindicado e conquistado em sociedade (cf. Is 58). A esmola/ caridade verdadeira é aquela que assiste o necessitado na sua necessidade imediata, mas que enxerga mais longe, percebendo que alguns problemas e suas soluções são de ordem estrutural e, portanto, demandam organização, persistência, reinvindicação e luta por direitos.

Quantas coisas ficamos sabendo só a partir dos temas propostos pelas Campanhas da Fraternidade nestes quase 60! Sem elas, muito provavelmente, sequer imaginaríamos que são problemas que pedem nosso envolvimento na busca de solução: pessoas traficadas para exploração sexual e venda de órgãos; a urgência da inclusão de pessoas com deficiência; a degradação da nossa casa comum; o mundo do trabalho, da educação e da saúde com seus desafios; a família e suas demandas para ser aquilo que Deus sonhou para ela; o mundo dos migrantes, do povo negro, dos indígenas, dos idosos, da mulher e tantos outros temas que nos foram colocando a par de uma gama de realidades com suas alegrias e tristezas e que pedem de cada crente o seu pronto envolvimento na busca das soluções. Sem as Campanhas da Fraternidade teríamos continuado alheios a tudo isso, na ilusão de que tudo no mundo vai bem, obrigado, e de que, como cristãos, não temos nenhuma responsabilidade sobre eles.

O tema deste ano é FRATERNIDADE E FOME e o lema é “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Neste relato dos pães, em Mateus 14, Jesus claramente nos responsabiliza a dar de comer a quem tem fome. É claro que as atitudes imediatas na solução da questão da fome são muito louváveis, mas sabemos que, sem enfrentar as causas estruturais, o problema jamais será solucionado. É isso que a Campanha da Fraternidade deste ano nos propõe: olharmos mais longe e mais fundo para os 33 milhões de famintos do nosso país; perguntarmo-nos porque num país que produz tanta comida, 125 milhões de pessoas vivem em estado de insegurança alimentar: leve, moderada ou grave. Se dissociarmos a paixão do Senhor da paixão cotidiana dos nossos irmãos, não teremos entendido nada da paixão do Senhor. Estaremos celebrando o mistério sem, ao menos, termos nos aproximado do seu sentido. Adentrar o mistério da fé é entender que a paixão daquele Homem-Deus no ano 33 d. C. reverbera na paixão dos mais pequeninos dos dias de hoje. Opor-se a isso, é tomar partido contra o próprio Cristo. Pensemos nisso!

Texto de Virlene Mendes – Folha da Boa Nova Ed. 358,  Mar/2023, pág. 02 

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