CF 2024 VER: o que gera e alimenta a inimizade?

F/ nekur.iv

Com o Tema: “Fraternidade e Amizade Social” e com o Lema: “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8), a Campanha da Fraternidade 2024 (CF 2024) nos ajuda a fazer um caminho de conversão quaresmal em três direções:

  1. VER as situações de inimizade que geram divisões, violência e destroem a dignidade dos filhos e filhas de Deus.
  2. Deixar-nos ILUMINAR pelo Evangelho que nos une como família e resgata o sentido das relações humanas baseados no respeito e na reciprocidade do bem comum.
  3. AGIR conforme a proposta quaresmal, em que nos esforçamos para uma mudança, não só pessoal, mas “alargando a tenda” (cf. Is 54,2), para transformações comunitárias e sociais, na busca de uma sociedade amiga, justa, fraterna e solidária. Aqui vamos nos deter no Ver a realidade partindo da pergunta:

O que gera e alimenta a inimizade?

Essa pergunta atravessa a história da humanidade. No livro do Gênesis (Gn 4,1-16), apesar de os irmãos terem sido gerados com a ajuda, a bênção e a proteção de Deus, isso não impediu que um se levantasse e tirasse a vida do outro. Abel nada tinha feito contra seu irmão. Mas Caim, que já não agia bem, fica irado ao ver que Deus recusa sua oferta e acolhe a oferenda de Abel. Caim é expressão da violência, do ódio, do rancor que toma conta das pessoas e explode em violência, fazendo romper a fraternidade planejada e querida por Deus.

Por sua vez, Deus é sensível ao sofrimento de seus filhos, o sangue dos inocentes clama a Deus e Ele vem em socorro dos sofredores. Ao mesmo tempo, Deus questiona os que estão tomados pelo desejo de morte: “Onde está o seu irmão?” […] “Ouço o sangue do seu irmão clamando da terra por mim.” (Gn 4,9-10). Mais ainda, Deus pune os que praticam a maldade, mas não os pune com a morte. Ele coloca um sinal em Caim para que este não seja morto (cf. Gn 4,15). O autor da vida preserva a vida de todos, acredita na remissão de todos os seus filhos e filhas. Deus aponta novamente o caminho da necessária Amizade Social. Como nos recorda o Papa Francisco na Fratelli Tutti: somos chamados a “superar as inimizades e a cuidar uns dos outros” (FT, 57).

Caim deixa um contra testemunho ao projeto de Deus que é a fraternidade. Ele inaugura a inimizade social. Para Caim e seus continuadores, a vida humana, a vida do outro, não tem valor. O Texto Base da CF 2024 nos lembra que “O fratricídio começa quando Caim não é capaz de se alegrar com a alegria do irmão. Sua expressão mais radical é o assassinato, mas a mais sutil e mais vil é a indiferença. Após a atitude de matar, o coração de Caim se exime, inclusive, da dor ou da culpa. Ele extirpa o irmão do mundo porque antes já o eliminara do próprio coração” (TB 97).

O projeto de Deus é a fraternidade universal 

O relato bíblico deixa claro que somos todos irmãos e irmãs, criados para viver no mundo cheio das maravilhas que Deus deixou para toda a humanidade. O projeto de Deus é a fraternidade universal, mas nosso agir enfraquecido pelo pecado nos leva à quebra da fraternidade. Somos todos irmãos e irmãs, partilhamos da mesma dignidade de filhos e filhas de Deus. “O outro é sempre um irmão, uma irmã que precisamos acolher, conhecer e apreciar” (TB 29). Para Deus a vida humana é preciosa, “toda vida importa”.

Somos chamados a uma igualdade fundamental, temos uma “alma racional”, somos capazes de pensar, de decidir, de fazer escolhas, com liberdade, esse é o dom maior de Deus. Por isso, somos também diferentes, pensamos diferentes, fazemos escolhas diferentes… e isso é uma riqueza! Nossas diferenças, nossa pluralidade nos enriquecem e nos complementam. Às vezes, somos divergentes! Pensamos diferente, rezamos diferente… E há pessoas que são até oponentes! O problema maior está no fechamento, no pecado que nos distancia de Deus e leva a enxergar as diferenças, divergências e oposições como características dos inimigos a serem abatidos.

E a solução não é o pensamento único. Não é a eliminação do diferente, não é agressão aos nossos irmãos. Temos de vencer a síndrome de Caim, que não raro é incentivada como um esquema social destinado a nos dividir para nos dominar com maior facilidade.

Um dos objetivos específicos desta CF 2024 é (1) “ANALISAR as diversas formas da mentalidade de indiferença, divisão e confronto em nossos dias e suas consequências para toda a humanidade, inclusive na dimensão religiosa” (TB p.7). O Texto base da CF 2024 nos lembra: “Em nossos dias, observamos diversas situações que muito nos angustiam. Encontramos, por exemplo, assédio moral e sexual, defesa do aborto, devastação ambiental, feminicídios, bullying, intolerância religiosa, algumas vezes com perseguição e destruição, tráfico de drogas, tráfico de pessoas, apologias ao armamentismo, situações análogas à escravidão, discurso de ódio, corrupção e fome, esta última, tema da Campanha da Fraternidade de 2023” (TB 32).

O Papa Francisco na Evangelii Gaudiun nos alerta, para o fato de que vivemos a “terceira guerra mundial em pedaços”. Já não valorizarmos a vida das pessoas. Vivemos uma “globalização da indiferença” (EG 54), as dores de tantos seres humanos já não despertam preocupação em nós. Mesmo diante da guerra, muitos permanecem insensíveis e ainda usam as redes sociais para fazer chacotas com quem sofre violência. O Texto Base da CF 2024 nos aponta que entre as graves causas desta inimizade social está um problema cultural que é a “destruição da coletividade”, o alargar da falsa ideia de que o indivíduo solitário é autossuficiente. O individualismo é o que leva a pessoa a sentir-se superior às demais gerando pessoas violentas, insensíveis, desumanizadas, machistas, homofóbicas, doentias, que não conseguem unir suas práticas religiosas com uma vida coerente ao Evangelho e à prática da justiça. A “Síndrome de Caim” (TB 55-56), chega sorrateiramente e toma conta de muitos, deixando um rastro de devastação, violência, instaurando o medo e a morte.

O Tempo da Quaresma é um convite à conversão, à volta para Deus. E isso se refere não apenas a gestos exteriores, mas, sobretudo, ao esforço de colocar em prática a vontade de Deus. É preciso ter presente que o isolamento e o fechamento nos afastam de Deus. Somos desafiados a recuperar o valor da vida humana e da vida no planeta. A vida é dom maior, mais precioso.

Para refletir: O que Deus espera de nós diante da realidade de violência e morte em que vivemos, hoje?

Denilson Mariano

F/ Revista O Lutador

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