Templos, Igrejas e protestos. É preciso refletir…

Nesses dias, a imprensa ávida por qualquer notícia sensacionalista que legitime denúncias contra movimentos populares e partidos considerados de esquerda, se deleitou com imagens e narrativas do que chamaram de invasão de uma Igreja em Curitiba. Autoridades eclesiásticas e civis protestaram contra o desrespeito ao lugar sagrado e o assunto está sendo debatido na própria câmara de vereadores da cidade.

O debate se dá sobre o fato dos manifestantes terem entrado na Igreja depois da Missa e terem expressado, dentro do templo, a denúncia contra o assassinato truculento e cruel de Moïse, jovem congolês, barbaramente torturado e assassinado, em um quiosque na Barra da Tijuca. Nestes mesmos dias, ocorreu também, no Rio de Janeiro, a morte de outro negro, baleado por vizinho policial, que o confundiu com um ladrão. Naquele final de semana, em diversas regiões do Brasil, ocorreram manifestações de protestos contra esses atos extremos de racismo contra negros. Em Curitiba, no centro histórico da cidade, o ato se reuniu em frente a uma Igreja, que, historicamente, pertenceu a uma confraria negra. Depois do horário da missa, no final da tarde, os manifestantes entraram na Igreja e encerraram ali o seu protesto pacífico.

Sobre o fato, podem se fazer várias considerações. Antes de tudo, em termos metodológicos e estratégicos, organizações populares e partidos progressistas tomaram posições críticas em relação ao ocorrido. De fato, o grupo que fazia a manifestação não sofreu nenhuma perseguição, não fugia de nenhuma repressão e não precisava ter ocupado a Igreja, sem permissão dos responsáveis pelo templo.

Do ponto de vista institucional, todos sabem que a maioria dos eclesiásticos católicos concorda que Igrejas sejam usadas para missas de posse de governadores ou prefeitos de direita. No entanto, considera desrespeito ao lugar sagrado qualquer manifestação de categorias populares que possa ser vista como sendo de esquerda.

Em Roma, o papa Francisco pode considerar prioritário dialogar com movimentos populares e defender a vida de migrantes africanos, mas essa não é ainda a sensibilidade de muitos ministros e fieis católicos no Brasil. As pastorais sociais da CNBB e muitos padres e agentes de pastoral participaram dos atos de protesto e de denúncia contra o racismo. Muitos religiosos gritaram com as organizações populares que “vidas negras importam”, mas para muitos cristãos, católicos e evangélicos, esse assunto parece não fazer parte do anúncio da fé e da missão da Igreja.

Na época da ditadura militar brasileira, em Recife, estudantes que protestavam contra a repressão ocuparam uma Igreja no centro da cidade. Assim que soube, o próprio arcebispo Dom Helder Câmara foi para a Igreja e se colocou lá ao lado dos estudantes até conseguir que eles pudessem sair do templo em segurança. O mesmo ocorreu em Salvador, BA, onde a Igreja ocupada pelos rapazes e moças foi a basílica do Mosteiro de São Bento. O abade Dom Timóteo Amoroso Anastácio não somente abriu as portas da Igreja, como declarou o Mosteiro como espaço de abrigo e santuário de proteção da juventude. Do mesmo modo, em São Bernardo do Campo, em 1980, a Igreja Matriz foi abrigo para assembleias dos metalúrgicos em greve perseguidos pela ditadura.

Atualmente, embora em outro contexto político, a sociedade tem direito de cobrar dos responsáveis das Igrejas a coerência profética com o evangelho de libertação. Originalmente, o Cristianismo não tinha templos e sim Igrejas. Enquanto os santuários se colocam como locais sagrados, Igrejas significam espaços de assembleia. Quando o apóstolo Paulo chamou as comunidades às quais escrevia de Igrejas, estava afirmando que eram assembleias de pessoas não reconhecidas como cidadãs pelo império, mas que nas comunidades cristãs, podiam se reunir e se manifestar como assembleias de cidadãos e cidadãs do reinado divino no mundo. Ainda hoje, quando manifestantes ocupam uma Igreja, de alguma forma, interpelam aos senhores do templo: Qual é o sentido e a missão da Igreja?

Ao mesmo tempo que desejamos que os movimentos populares sempre se esmerem por respeitar educadamente a todos os ambientes e deem exemplo de diálogo com todas as pessoas com as quais se encontram, pedimos a Deus que os discípulos de Jesus aceitem retomar o caráter profético da fé cristã.

Mesmo que a postura do arcebispo e da arquidiocese de Curitiba tenha sido, em geral, mais aberta e solidária, sonhamos com tempos nos quais padres e bispos não somente não se oponham, como fiquem felizes quando suas Igrejas forem ocupadas pacificamente por grupos populares que defendem a justiça e a vida para todas as pessoas humanas e na comunhão com todos os seres vivos.*

*Ir. Marcelo Barros é monge beneditino, escritor e teólogo biblista brasileiro. Em 1969 foi ordenado padre por dom Helder Câmara. É membro da Comissão Teológica da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), que reúne teólogos da América Latina, África, Ásia. Recebeu, em 2021, o título de doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Dentre seus mais de 50 livros publicados, artigos e assessorias, destacamos aqui: Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes, 2019); com Emerson Sbardelotti e Edward Guimarães, organizou com mais de 40 autores, 50 anos de Teologias da Libertação. Memórias, revisão, perspectivas e desafios (Recriar, 2022).

Fonte: Observatório de Evangelização

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